BLOG

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PELA PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO: NOVIDADES E IMPASSES COM O ADVENTO DA LEI Nº 14.133/2021

Por: Gabriela Graçano dos Santos

A Lei Federal nº 14.133/2021, conhecida como a Nova Lei de Licitações e Contratos, trouxe avanços significativos no aperfeiçoamento das regras gerais que regem as contratações públicas da Administração direta, autárquica e fundacional dos entes federativos.

Dentre suas inovações, em matéria de responsabilização pelos atos praticados ao longo dos processos de contratação, o artigo 160 dispõe sobre a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em situações que envolvam abuso de direito ou confusão patrimonial, especialmente quando essas práticas visam facilitar ou encobrir atos ilícitos previstos no rol de irregularidades da legislação.

Contudo, a aplicação prática desse dispositivo enfrenta desafios relevantes. A ausência de regulamentação específica para o artigo 160 tem gerado incertezas, especialmente no que tange à observância de procedimento prévio, e dos limites e garantias para a sua aplicação.

Nesse ponto, especificamente, e para a compreensão da temática, válido trazer um panorama da desconsideração da personalidade jurídica em outras esferas do direito.

A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, derivada da disregard doctrine, foi positivada, em primeiro momento, com a disciplina do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990).[1]

Após, a Lei que trata sobre as sanções penais e administrativas derivadas de crimes ambientais no Brasil (Lei nº 9.605/1998), também dispôs, mesmo que de forma suscinta, em seu artigo 4º, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, quando utilizada como obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao meio ambiente.[2]

Na sequência, o Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002), consagrou a chamada “teoria maior” da desconsideração da personalidade jurídica, conferindo poder ao juiz de, a requerimento da Parte ou do Ministério Público, realizar a desconsideração sempre que constatado abuso da personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial.[3]

Por fim, a legislação mais recente que prevê a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito privado é a disciplinada pela Lei de Falências (Lei nº 11.101/2005) que determina a referida hipótese em seu artigo 82, diante da possiblidade de aplicação dos efeitos de uma sociedade de responsabilidade limitada ante o patrimônio de seus sócios.[4]

Em suma, a aplicação da referida teoria no âmbito do direito civil consiste no afastamento temporário, ocasional e excepcional da personalidade jurídica da sociedade empresarial, a fim de permitir, em caso de abuso ou manipulação fraudulenta, que o credor lesado satisfaça, com o patrimônio pessoal dos sócios da empresa, eventual obrigação não cumprida. Além disso, não se admite que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica possa ser invocado a qualquer tempo, sua incidência deve coincidir com o prazo prescricional da ação originária. Ou seja, em alguns casos, tem-se aplicado a inteligência da súmula 150 do Superior Tribunal Federal (STF)[5].

Desta feita, da análise das principais regras de direito privado que preveem a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, verifica-se que sua incidência se dá, via de regra, em observância a alguns requisitos, quais sejam: (i) a existência de procedimento pela via judicial; (ii) o requerimento de uma das partes ou do Ministério Público, quando cabível; (iii) a incidência de prazo prescricional, em alguns casos; e (iv) a observância do procedimento disciplinado pelo Código de Processo Civil, observada a ampla defesa e o contraditório.

É dizer, ao menos na esfera do direito privado, quando se pretender atingir o patrimônio do sócio ou administrador de determinada sociedade, deverão ser observados requisitos extrínsecos e intrínsecos para que a pretensão seja formulada, processada e julgada, mediante requerimento formulado pelas partes ou pelo Ministério Público, quando for o caso, resguardando-se para que o patrimônio do particular requerido não seja atingido por eventual decisão proferida de maneira arbitrária.

Por sua vez, na esfera do direito administrativo sancionador, o tema foi introduzido, pela primeira vez, a partir da redação dada pelo art. 14 da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.486/2013), que assim disciplina:

Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa..

Assim, a legislação mais recente que passou a prever a possibilidade de aplicação do procedimento em análise encontra respaldo na disposição do art. 160 da chamada “Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, a Lei nº 14.133/2021:

Art. 160. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia. (grifou-se)

Como se pode notar, enquanto a Lei Anticorrupção, disciplina que os efeitos da sanção eventualmente aplicada à pessoa jurídica desconsiderada limitam-se aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos prevê que, para além destas entidades, quando a personalidade jurídica for desconsiderada, estendem-se também os efeitos da sanção a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado.

Em relação aos requisitos necessários à adoção da teoria da desconsideração na esfera privada ou administrativa, ainda que existam diferenças redacionais entre o art. 50 do Código Civil, o art. 14 da Lei Anticorrupção, e o art. 160 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, pode-se concluir que, em essência, os requisitos contidos nessas três normas, são os mesmos usualmente referenciados pela doutrina.

Nos termos da Lei de Licitações, para a concretização do procedimento em tela, ou seja, para “aplicar” a desconsideração da personalidade jurídica, também se prevê a necessidade de observância aos princípios da ampla defesa e do contraditório, bem como a obrigatoriedade de análise jurídica prévia à decisão de desconsideração, reforçando o controle de legalidade em procedimento administrativo mais severo aos licitantes e contratados.

Todavia, em que pese a similaridade quanto a necessária observância de procedimento prévio, não se pode afirmar que as leis em comento seguem a mesma lógica em relação ao deslinde do referido procedimento em si.

Isso porque, enquanto o regramento processualista civil disciplina que a personalidade jurídica apenas poderá ser desconsiderada mediante observância do devido processo legal e prévia intervenção necessariamente jurisdicional, por outro lado, a regra contida no art. 160 da Lei de Licitações determina que a desconsideração pode ser declarada em um processo administrativo, dispensada a necessidade de decisão judicial, desde que observados a ampla defesa, o contraditório, e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.

É dizer, no âmbito de processos administrativo sancionadores, sob o viés da Lei nº 14.133/2021, a personalidade jurídica poderá ser desconsiderada mediante iniciativa da própria Administração, que dispõe de premissas como a autotutela e autoexecutoriedade de seus atos, não havendo que se falar, portanto, em sujeição aos parâmetros previstos pelo Código de Processo Civil.

É exatamente nesse aspecto que reside a maior problemática verificada na vigência do dispositivo em comento. O art. 160 da NLLC não foi devidamente regulamentado, motivo pela qual não se verificam critérios e procedimentos suficientes e claros para a sua aplicação, ante a extensão dos efeitos de sanções deveras gravosas, como as previstas pela Lei de Licitações.

Portanto, deve-se ter cautela com a omissão em comento, justamente em razão da possível banalização da utilização do referido instituto, bem como eventual arbitrariedade por parte da Administração, quando da sua aplicação. A desconsideração da personalidade jurídica no direito administrativo sancionador, especialmente sob a égide da NLLC, revela uma evolução significativa no tratamento jurídico do tema. Contudo, a falta de regulamentação e a ampliação dos efeitos previstos pela lei exigem atenção redobrada da Administração Pública e dos operadores do direito para que o instituto seja aplicado de forma justa, eficiente e em consonância com os preceitos constitucionais.


[1] Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

[2] Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

[3] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

[4] Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil. § 1º Prescreverá em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência, a ação de responsabilização prevista no caput deste artigo. § 2º O juiz poderá, de ofício ou mediante requerimento das partes interessadas, ordenar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível com o dano provocado, até o julgamento da ação de responsabilização. (grifou-se)

[5] Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação.

Cookies necessários                                                                                        Sempre ativos

Estes cookies são os mínimos necessários para que o website funcione da forma esperada e não podem ser gerenciados. Eles possibilitam funções básicas do site, como por exemplo, definição das preferências de privacidade, início de sessão ou preenchimento de formulários. Sem eles o website não funcionará.

Cookies estatísticos                                                                                                     

Estes cookies permitem a contagem de visitas e fontes de tráfego, de forma que possamos medir e melhorar o desempenho do nosso site. Importante ressaltar que utilizamos estes cookies para gerar estatísticas anônimas sobre o uso deste site.

Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência a você no uso de nosso site.  Ao clicar em “Aceitar tudo” você concorda com nosso uso de cookies. Ao clicar em “Rejeitar cookies não necessários”, você não permitirá a coleta de cookies que não essenciais para o funcionamento do site. Você também poderá gerenciar suas preferências ao clicar em “Gerenciar Preferências”. Para mais informações acesse nossa Política de Cookies aqui.